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Aparecimento da SIDA

Introdução

Desde o surgimento da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA) descrita em 1981, inúmeros medicamentos vêm sendo desenvolvidos a fim de combater de forma eficaz o vírus da imunodeficiência humana (HIV). Actualmente dispomos de três classes de anti-retrovirais específicos: inibidores da transcriptase reversa (nucleosídeos), inibidores da transcriptase reversa (não nucleosídeos) e inibidores da protease, que podem ser usados isoladamente ou associados. A associação de dois inibidores de transcriptase com um inibidor de protease, popularmente conhecida como coquetel, é a chamada HAART (Highly Active Anti-retroviral Therapy).

A didanosina ou DDI é um análogo da purina com atividade anti-retroviral contra os vírus HIV-1 e HIV-2 incluindo as cepas resistentes à zidovudina (AZT). Intracelularmente é convertida pela enzima 5-nucleotidase em dd-IMP (dideoxytinosina 5 monofosfato) que por fim é metabolizada em sua forma activa dd-ATP (2-3 dideoxyadenosina trifosfato), funcionando como um competidor do substrato dATP da enzima transcriptase reversa viral (inibidor competitivo). A neuropatia periférica e a pancreatite são considerados os principais efeitos colaterais dose dependentes da didanosina, ocorrendo geralmente nos primeiros 3 a 6 meses de uso. Casos de retinopatia tóxica em crianças HIV positivas são relatados associados ao uso de altas doses de DDI, porém raros casos são relatados em adultos. O objectivo deste trabalho é descrever um caso incomum de retinopatia tóxica secundária ao uso da didanosina em adulto HIV positivo. RELATO DO CASO C.S., 32 anos, feminina, caucasiana, natural do Rio de Janeiro, HIV positiva há 6 anos, assintomática, compareceu ao serviço de Oftalmologia para exame oftalmológico de rotina. Apresentava contagem de CD4+ 140 céls/mm3 e carga viral indetectável, classificada no estágio A2 pelo CDC (Center of Disease Control 1992).

A paciente estava em uso de zidovudina (AZT) e didanosina (DDI) há três anos. Ao exame oftalmológico apresentava acuidade visual igual a 1,0 e pressão intra-ocular de 13mmHg em ambos os olhos. À biomicroscopia não evidenciamos alterações no segmento anterior. À fundoscopia observamos lesões numulares de coloração amarelada em forma de cinturão 360° na região equatorial de ambos os olhos. Realizamos angiografia fluoresceínica que demonstrou a presença de alterações pigmentadas numulares com múltiplas áreas de atrofia do epitélio pigmentário retiniano circunscritas por áreas de hipopigmentação localizadas na região equatorial. Havia também uma discreta diminuição da vascularização periférica.

A paciente apresentava hemograma normal, Rx de tórax sem alterações, VDRL negativo, sorologia para toxoplasmose negativa e IgG para CMV positivo. Consideramos as lesões apresentadas pela paciente como sendo secundárias ao uso da didanosina.

Discussão

Várias são as doenças oportunistas que afectam os olhos na síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), essas relacionadas principalmente com contagens de CD4+ abaixo de 200 céls/mm3. A principal infecção ocular na AIDS é a retinite por citomegalovirus (CMV). As doenças oportunistas apresentam, na grande maioria das vezes, quadros clínicos típicos o que possibilita o diagnóstico apenas por meio de exame oftalmológico. No caso descrito a paciente não apresentava qualquer alteração característica de doença oportunista, além de todos os exames solicitados serem negativos.

Algumas drogas utilizadas no tratamento da AIDS ou de doenças associadas podem causar doença ocular. Cidofovir e rifabutin, drogas para o tratamento de CMV e micobacteriose atípica respectivamente estão associadas a uveíte anterior. Nossa paciente não apresentava processo inflamatório no segmento anterior e tampouco fez uso dessas drogas. Até o momento duas drogas utilizadas no tratamento da AIDS ou doenças associadas estão relacionadas ao comprometimento retiniano. A clofazimina é uma droga utilizada no tratamento da doença de Hansen e em casos de micobacteriose atípica.

Cunninghan et al. descreveram um caso de maculopatia tipo bull's eye a qual consideraram ser secundária ao uso de clofazimina. Apesar da suspensão da droga não houve melhora do quadro ocular. Whitcup et al. descreveram um caso de criança HIV positiva que apresentou lesões numulares periféricas em ambos os olhos. Os autores justificaram o aparecimento das lesões ao uso de altas doses de DDI. Mais tarde um estudo maior foi realizado onde foram encontradas três crianças com as mesmas lesões periféricas secundárias a altas doses de DDI. Apesar de bem documentadas essas lesões secundárias ao uso da didanosina são bastante raras. Classicamente essas alterações relacionadas ao DDI acometiam apenas crianças que receberam altas doses da droga. Cobo et al. descreveram os primeiros casos de retinopatia associada ao DDI em adultos. Em todos os casos descritos na literatura os pacientes apresentaram lesões numulares periféricas em ambos os olhos, assim como descrevemos em nossa paciente.

Lalonde et al. descreveram um caso isolado de uveíte anterior e edema macular cistóide associado a zidovudina (AZT). Nossa paciente nunca apresentou alteração macular ou uveíte anterior. A associação de AZT com edema macular foi relatada apenas uma vez, apesar do AZT ser droga de primeira escolha no tratamento da infecção pelo HIV. Whitcup et al. realizaram estudo anatomo-patológico que demonstrou que as lesões ocorrem primariamente no epitélio pigmentário da retina e acometem posteriormente a coriocapilar. O mecanismo pelo qual o epitélio pigmentário retiniano é lesado devido ao DDI é ainda desconhecido, porém parece estar relacionado ao efeito da droga sobre o DNA mitocondrial. Este relato demonstra a importância do exame oftalmológico de rotina em pacientes HIV, mesmo quando os pacientes não apresentam risco de doença oportunista ocular.

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